Vinte e sete habitantes em Desemboque
07/10/15 07:20“Homens de extrema bravura, desterrados do seu próprio mundo, fundaram no sertão da farinha podre em 1743 a capela de Nossa Senhora do Desterro, dando início ao povoado de Desemboque, marco inicial da colonização do Brasil central.”
É esta frase, de Hidelbrando Pontes, escrita em um grande muro logo na entrada, que recepciona os visitantes. No fim da tarde do dia 5 de outubro eu desembarquei no Arraial de Desemboque (MG), uma pequena vila encravada nas montanhas do sul de Minas Gerais, no distrito de Sacramento, terra do ator Lima Duarte e que tem como filha ilustre a primeira escritora negra do Brasil, Carolina de Jesus.
Depois de ficar por dois dias em Sacramento (MG) –já que o ônibus só sai a cada dois dias, e onde tive de gastar R$ 90 em hospedagem e comida no centenário hotel da cidade–, consegui uma carona.
Ela veio com o professor Carlos Alberto Cerchi, 65, historiador e profundo conhecedor da história do Arraial, junto com sua esposa Maria de Fátima Archanjo, 44, e seu bebê Olga, de dois meses.
Os ponteiros do relógio em Desemboque parecem girar lentamente: a cidade não parou no tempo, mas se recusa a correr, e a vida segue em outro tempo. “Aqui somos donos do nosso tempo” diz Maria de Fatima, uma paulistana que adotou a região.
E de fato é. Ao andar pela “currutela”, como eles mesmo definem, e encontrarmos o sr. José de Moura, Carlos me orienta que ali não se deve cumprimentar de longe. É preciso chegar perto para conversar e eles não gostam de falar alto. O cumprimento de mãos também não segue os nossos padrões, a mão é levantada e não se aperta, apenas encosta.
José Moura, que morava em fazenda ali perto, foi forçado a viver em Desemboque após uma bronquite. Ele não reclama, mas sente falta da fazenda, onde diz que é mais sossegado.
Ao descer um pouco mais pela vila, encontramos o sr. José Renato. Pergunto então se ele tem ideia de quantas pessoas moram ali e ele, sem sair do lugar, faz um rápido senso. “Deixa eu ver, do lado de cá tem, 1, 2, 3.. e depois do lado de lá tem 25, 26, 27…”, e conclui com precisão, 27 pessoas.
Desemboque tem duas igrejas, uma fica bem na entrada e é a dos negros, N. S. do Rosário –apesar de não existir um único negro no pequeno vilarejo. A dos brancos, N. S. do Desterro, fica a cerca de 300 metros mais abaixo. Bem na frente há um cemitério onde existem túmulos de 1893 e, segundo as histórias, somente brancos eram enterrados.
À noite, recebo no acampamento que montei bem no meio do arraial a visita do morador Lazaro Francisco Paula, 70, que estranhou o movimento da barraca e foi verificar de perto o que era.
Depois de me apresentar ele esticou sua mão e apenas encostou na minha, como é o habito local.
Ele conta que só saiu de Desemboque uma única vez na vida e que não ficou fora mais que 11 meses pois não aguentou a agitação da cidade grande. Eu então perguntei onde ele morou: “Sacramento”, disse ele, uma cidade que tem menos de 25 mil habitantes e é bastante pacata.
Segundo o historiador Carlos, que dá aulas de biologia, Desemboque foi uma resistência de índios e negros a colonização. Somente depois de 1743 eles foram vencidos, abrindo a porta de entrada da colonização do Brasil central.
Desemboque tem 27 habitantes, duas igrejas, 15 cachorros e muitas histórias